Carta Encíclica Dilexit Nos do Santo Padre Francisco sobre o Amor Humano e Divino
do Coração De Jesus
1. «Amou-nos», diz São Paulo referindo-se a Cristo (Rm 8, 37),
para nos ajudar a descobrir que nada «será capaz de separar-nos» desse amor (Rm
8, 39). Paulo afirmava-o com firme certeza, porque o próprio Cristo tinha
garantido aos seus discípulos: «Eu vos amei» (Jo 15, 9.12). Disse
também: «Chamei-vos amigos» (Jo 15, 15). O seu coração aberto
precede-nos e espera-nos incondicionalmente, sem exigir qualquer pré-requisito
para nos amar e oferecer a sua amizade: Ele amou-nos primeiro (cf. 1 Jo
4, 10). Graças a Jesus, «conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele»
(1 Jo 4, 16).
CAPÍTULO I
A
IMPORTÂNCIA DO CORAÇÃO
2. Para exprimir o amor de Jesus Cristo, recorre-se frequentemente ao
símbolo do coração. Há quem se interrogue se isto atualmente tenha um
significado válido. Porém, é necessário recuperar a importância do coração
quando nos assalta a tentação da superficialidade, de viver apressadamente sem
saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na
engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência [1].
O que entendemos quando dizemos
“coração”?
3. No grego clássico profano, o termo kardía designa a parte mais
íntima dos seres humanos, dos animais e das plantas. Em Homero, indica não só o
centro corpóreo, mas também a alma e o centro espiritual do ser humano. Na Ilíada,
o pensamento e o sentimento pertencem ao coração e estão muito próximos um do
outro [2].
O coração aparece como o centro do desejo e o lugar onde são forjadas as
decisões importantes duma pessoa [3].
Em Platão, o coração assume, de certa forma, uma função “sintetizante” do que é
racional e das tendências de cada pessoa, uma vez que tanto o comando das
faculdades superiores como as paixões se transmitem através das veias que
convergem no coração [4].
Assim, desde a antiguidade advertimos a importância de considerar o ser humano
não como uma soma de diferentes capacidades, mas como um complexo
anímico-corpóreo com um centro unificador que dá a tudo o que a pessoa
experimenta um substrato de sentido e orientação.
4. A Bíblia diz que «a Palavra de Deus é viva, eficaz [...] e discerne
os sentimentos e as intenções do coração» (Heb 4, 12). Deste modo,
fala-nos de um núcleo, o coração, que se esconde por detrás de todas as
aparências, e até mesmo de pensamentos superficiais que nos confundem. Os
discípulos de Emaús, na sua misteriosa caminhada com Cristo ressuscitado,
viviam um momento de angústia, confusão, desespero, desilusão. Mas, para além
disso e apesar de tudo, acontecia algo no seu íntimo: «Não nos ardia o coração,
quando Ele nos falava pelo caminho?» (Lc 24, 32).
5. O coração é igualmente o lugar da sinceridade, onde não se pode
enganar ou dissimular. Costuma indicar as verdadeiras intenções, o que se
pensa, se acredita e se quer realmente, os “segredos” que não se contam a
ninguém, em suma, a verdade nua e crua de cada um. O que não é aparência ou
mentira, mas autêntico, real, inteiramente “pessoal”. É por isso que Sansão,
que não havia revelado a Dalila o segredo da sua força, foi interpelado por ela
deste modo: «Como podes dizer “Amo-te”, se o teu coração não está comigo?» (Jz
16, 15). Só quando lhe revelou o seu segredo tão escondido é que ela «viu que
ele lhe abrira todo o coração» (Jz 16, 18).
6. Frequentemente, esta verdade íntima de cada pessoa está escondida
debaixo de muita superficialidade, o que torna difícil o autoconhecimento e
ainda mais difícil conhecer o outro: «Nada mais enganador que o coração, tantas
vezes perverso: quem o pode conhecer?» (Jr 17, 9). Compreendemos assim
porque é que o livro dos Provérbios nos exorta: «Vela com todo o cuidado sobre
o teu coração, porque dele jorram as fontes da vida. Preserva-te da linguagem
enganosa, afasta de ti a maledicência» (Pr 4, 23-24). A mera aparência,
a dissimulação e o engano danificam e pervertem o coração. Para além das muitas
tentativas de mostrar ou exprimir o que não somos, é no coração que se decide
tudo: ali não conta o que mostramos exteriormente ou o que ocultamos, ali conta
o que somos. E esta é a base de qualquer projeto sólido para a nossa vida,
porque nada que valha a pena pode ser construído sem o coração. As aparências e
as mentiras só trazem vazio.
7. Como metáfora, quero recordar algo que já contei em outra ocasião:
«Recordo que no carnaval, quando éramos crianças, a avó nos preparava doces, e
a que ela fazia era uma massa muito fina. Depois colocava-a no azeite e aquela
massa crescia e quando nós a comíamos, estava vazia. Aqueles doces em dialeto
chamavam-se “mentirinhas”. E era precisamente a avó quem explicava a razão:
aqueles doces “são como as mentiras, parecem grandes, mas dentro não têm nada,
não há nada verdadeiro, não há substância alguma”» [5].
8. Em vez de procurar uma satisfação superficial e de representar um
papel diante dos outros, é melhor deixar que surjam perguntas decisivas: quem
realmente sou? O que procuro? Que sentido quero dar à vida, às minhas escolhas
e ações? Por que razão e para que fim estou neste mundo? Como vou querer
avaliar a minha existência quando ela terminar? Que sentido quero dar a tudo o
que vivo? Quem quero ser perante os outros? Quem sou diante de Deus? Estas
perguntas conduzem-me ao meu coração.
9. Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração; indicar
onde cada pessoa, de qualquer classe e condição, faz a própria síntese; onde os
seres concretos encontram a fonte e a raiz de todas as suas outras potências,
convicções, paixões e escolhas. Movemo-nos, porém, em sociedades de
consumidores em série, preocupados só com o agora e dominados pelos ritmos e
ruídos da tecnologia, sem muita paciência para os processos que a interioridade
exige. Na sociedade atual, o ser humano «corre o perigo de se desorientar do
centro de si mesmo» [6].
«O homem contemporâneo encontra-se com frequência transtornado, dividido, quase
privado de um princípio interior que crie unidade e harmonia no seu ser e no
seu agir. Modelos de comportamento infelizmente bastante difundidos, exaltam a
sua dimensão racional-tecnológica, ou, ao contrário, a instintiva» [7].
Falta o coração.
10. Ora, o problema da sociedade líquida é atual, mas a desvalorização
do centro íntimo do homem – o coração – vem de mais longe: encontramo-la já no
racionalismo grego e pré-cristão, no idealismo pós-cristão ou no materialismo
nas suas diversas formas. O coração teve pouco espaço na antropologia e é uma
noção estranha ao grande pensamento filosófico. Preferiram-se outros conceitos,
como a razão, a vontade ou a liberdade. O seu significado permanece impreciso e
não lhe foi atribuído um lugar específico na vida humana. Talvez porque não
fosse fácil colocá-lo entre as ideias “claras e distintas” ou porque o
conhecimento de si mesmo supõe dificuldade: parece que a realidade mais íntima
é também a mais afastada do nosso conhecimento. Talvez porque o encontro com o
outro não se consolida como caminho para nos encontrarmos a nós próprios, já
que o pensamento conduz, uma vez mais, a um individualismo doentio. Muitos,
para construir os seus sistemas de pensamento, sentiram-se seguros no âmbito
mais controlável da inteligência e da vontade. E, ao não se encontrar um lugar
para o coração, como algo distinto das faculdades e das paixões humanas
consideradas separadamente, também não se desenvolveu suficientemente a ideia
de um centro pessoal, em que a única realidade que pode unificar tudo é, em
última análise, o amor.
11. Ao não se dar o devido valor ao coração, desvaloriza-se também o que
significa falar a partir do coração, agir com o coração, amadurecer e curar o
coração. Quando não se consideram as especificidades do coração, perdemos as
respostas que a inteligência por si só não pode dar, perdemos o encontro com os
outros, perdemos a poesia. E perdemos a história e as nossas histórias, porque
a verdadeira aventura pessoal é aquela que se constrói a partir do coração. No
fim da vida, só isto contará.
12. É preciso afirmar que temos um coração e que o nosso coração
coexiste com outros corações que o ajudam a ser um “tu”. Como não podemos
desenvolver longamente este tema, recorreremos ao personagem chamado
Stavroguine, de um romance de Dostoievski [8].
Romano Guardini aponta-o como a própria encarnação do mal, porque a sua
principal caraterística é não possuir coração: «Stavroguine, porém, não possui
coração. O seu espírito é, portanto, frio e vazio e o seu corpo intoxica-se de
indolência e sensualidade “animalesca”. Não pode ir até junto dos outros homens
nem estes podem chegar na realidade até ele. Porque é o coração que origina a
proximidade; é pelo coração que me encontro junto dos outros e os outros estão
igualmente junto de mim. Só o coração pode acolher, dar refúgio. A
interioridade é o ato e esfera do coração. Stavroguine, porém, encontra-se
longe, […] muito afastado também de si mesmo. O homem está em intimidade com o
seu íntimo no coração, não no espírito. Estar em intimidade com o íntimo, no
espírito, não é do domínio humano. Mas quando o coração não vive, o homem
encontra-se ao lado de si mesmo» [9].
13. É necessário que todas as ações sejam colocadas sob o “controle
político” do coração, que a agressividade e os desejos obsessivos sejam
acalmados no bem maior que o coração lhes oferece e na força que ele tem contra
os males; que a inteligência e a vontade sejam também postas ao seu serviço,
sentindo e saboreando as verdades em vez de as querer dominar, como algumas
ciências tendem a fazer; que a vontade deseje o bem maior que o coração
conhece, e que a imaginação e os sentimentos se deixem também moderar pelo
bater do coração.
14. Em última análise, poder-se-ia dizer que eu sou o meu coração,
porque é ele que me distingue, que me molda na minha identidade espiritual e
que me põe em comunhão com as outras pessoas. O algoritmo que atua no mundo
digital mostra que os nossos pensamentos e as decisões da nossa vontade são
muito mais “standard” do que pensávamos. São facilmente previsíveis e
manipuláveis. Não é o caso do coração.
15. Trata-se de uma palavra importante para a filosofia e a teologia,
que procuram alcançar uma síntese integral. Na verdade, a palavra “coração” não
pode ser explicada plenamente pela biologia, pela psicologia, pela antropologia
ou por qualquer outra ciência. É uma daquelas palavras originais que
«significam realidades que dizem respeito ao homem no seu conjunto enquanto
pessoa corpóreo-espiritual» [10].
Assim, o biólogo não é mais realista quando fala do coração, porque vê apenas
um aspecto dele e o todo não é menos real, pelo contrário, é-o ainda mais.
Tampouco uma linguagem abstrata poderia ter o mesmo significado concreto e,
simultaneamente, integrador. Se o “coração” leva ao mais íntimo da nossa
pessoa, permite também que nos reconheçamos na nossa integralidade e não apenas
num mero aspecto isolado.
16. Por outro lado, este poder único do coração ajuda-nos a compreender
porque é que se diz que quando apreendemos uma realidade com o coração podemos
conhecê-la melhor e mais plenamente. Isto conduz-nos inevitavelmente ao amor de
que esse coração é capaz, porque «o mais íntimo da realidade é amor» [11].
Para Heidegger, segundo a interpretação de um pensador contemporâneo, a
filosofia não começa com um conceito puro ou uma certeza, mas com uma comoção:
«O pensamento deve ser comovido antes de trabalhar com conceitos, ou enquanto
trabalha com eles. Sem a comoção, o pensamento não pode começar. A primeira
imagem mental seria a pele arrepiada. É a comoção que primeiramente dá o que
pensar e perguntar. A filosofia ocorre sempre numa tonalidade afetiva
fundamental ( Stimmung)» [12].
E é aqui que surge o coração, que «guarda as tonalidades afetivas fundamentais,
[…] trabalha como “guardião da tonalidade afetiva fundamental”. O “coração”
ouve não-metaforicamente a “voz silenciosa” do ser ao se deixar afinar e
determinar por ela» [13].
O coração que une os fragmentos
17. Ao mesmo tempo, o coração torna possível qualquer vínculo autêntico,
porque uma relação que não é construída com o coração não pode ultrapassar a
fragmentação do individualismo. Restariam apenas duas mónadas que se justapõem,
mas não se ligam verdadeiramente. Uma sociedade cada vez mais dominada pelo
narcisismo e pela autorreferencialidade é uma sociedade “anti-coração”. E, por
fim, chega-se à “perda do desejo”, porque o outro desaparece do horizonte e nos
fechamos no nosso egoísmo, sem capacidade para relações saudáveis [14].
Como resultado, tornamo-nos incapazes de acolher Deus. Como diria Heidegger,
para receber o divino é preciso construir uma «casa de hóspedes» [15].
18. Vemos assim como no coração de cada pessoa se produz esta ligação
paradoxal entre a valorização do próprio ser e a abertura aos outros, entre o
encontro muito pessoal consigo mesmo e o dom de si aos outros. Só nos tornamos
nós próprios quando adquirimos a capacidade de reconhecer o outro, e só
encontra o outro quem é capaz de reconhecer e aceitar a própria identidade.
19. O coração é também capaz de unificar e harmonizar a própria história
pessoal, que parece fragmentada em mil pedaços, mas na qual tudo pode adquirir
sentido. É isso que o Evangelho exprime no olhar de Maria, que olhava com o
coração. Ela foi capaz de dialogar com as experiências que conservava,
meditando-as no seu coração, dando-lhes tempo: simbolizando-as e guardando-as
no seu interior para as recordar. No Evangelho, a melhor expressão do que pensa
o coração é oferecida por duas passagens de São Lucas que nos dizem que Maria
“guardava (synetérei) todas estas coisas, ponderando-as (symbállousa)
no seu coração” (cf. Lc 2, 19.51). O verbo symbállein (do qual
provem a palavra “símbolo”) significa ponderar, unir duas coisas na mente,
examinar-se, refletir, dialogar consigo mesmo. Em Lc 2, 51, dietérei é
“conservava com cuidado”, e o que ela guardava não era apenas “a cena” que via,
mas também o que ainda não compreendia, conservando-o presente e vivo, na
esperança de unir tudo no seu coração.
20. Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia
e o amor são necessários para salvar o humano. O que nenhum algoritmo
conseguirá abarcar é, por exemplo, aquele momento de infância que se recorda
com ternura e que continua a acontecer em todos os cantos do planeta, mesmo com
o passar dos anos. Penso na utilização do garfo para selar as bordas daquelas
empadas caseiras que preparávamos com as nossas mães ou avós. É aquele momento
de aprendizagem culinária, a meio caminho entre a brincadeira e a idade adulta,
em que assumimos a responsabilidade do trabalho para ajudar o outro.Tal como o
exemplo do garfo, poderia citar milhares de pequenos pormenores que sustentam a
biografia de cada um: sorrir com uma piada, fazer um desenho em contraluz numa
janela, jogar o primeiro jogo de futebol com uma “bola de trapos”, cuidar de
lagartas numa caixa de sapatos, secar uma flor entre as páginas de um livro,
cuidar de um pássaro que caiu do ninho, formular um desejo ao despetalar uma
margarida. Todos estes pequenos pormenores, o ordinário-extraordinário, nunca
poderão estar entre os algoritmos. Porque o garfo, as piadas, a janela, a bola,
a caixa de sapatos, o livro, o pássaro, a flor… são sustentados pela ternura
preservada nas memórias do coração.
21. Este núcleo de cada ser humano, o seu centro mais íntimo, não é o
núcleo da alma, mas da pessoa inteira na sua identidade única, que é alma e
corpo. Tudo está unificado no coração, que pode ser a sede do amor com todas as
suas componentes espirituais, psíquicas e também físicas. Em última análise, se
aí reina o amor, a pessoa realiza a sua identidade de forma plena e luminosa,
porque cada ser humano é criado sobretudo para o amor; é feito nas suas fibras
mais profundas para amar e ser amado.
22. É por esta razão que, assistindo a sucessivas novas guerras, com a
cumplicidade, a tolerância ou a indiferença de outros Países, ou com simples
lutas de poder em torno de interesses de parte, podemos pensar que a sociedade
mundial está a perder o seu coração. Basta olhar e ouvir – nos diferentes lados
do confronto – as idosas que são prisioneiras destes conflitos devastadores. É
desolador vê-las chorar os netos assassinados, ou escutá-las desejar a própria
morte por terem perdido a casa onde sempre viveram. Elas, que muitas vezes
foram modelos de força e resiliência ao longo de vidas difíceis e sacrificadas,
chegam à última fase da sua existência e não recebem uma merecida paz, mas sim
angústia, medo e indignação. Descarregar a culpa nos outros não resolve este
drama vergonhoso. Ver as avós a chorar sem que isso se torne intolerável é
sinal de um mundo sem coração.
23. Quando alguém reflete, procura ou medita sobre o próprio ser e a sua
identidade, ou analisa questões mais elevadas; quando pensa no sentido da
própria vida e até mesmo procura a Deus, e ainda quando sente o gosto de ter
vislumbrado algo da verdade; todas estas reflexões exigem que se encontre o seu
ponto culminante no amor. Amando, a pessoa sente que sabe porquê e para que
vive. Assim, tudo converge para um estado de conexão e de harmonia. Por isso,
diante do próprio mistério pessoal, talvez a pergunta mais decisiva que se
possa fazer seja esta: tenho coração?
24. Isto comporta consequências para a espiritualidade. Por exemplo, a
teologia dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola tem como
princípio o affectus. O discurso é construído sobre uma vontade
fundamental – com toda a força do coração – que dá energia e recursos à tarefa
de reorganizar a vida. As regras e as composições de lugar que Inácio põe em
prática funcionam sobre um “fundamento” que é diferente delas: o desconhecido
do coração. Michel de Certeau mostra como as ‘moções’ de que fala Santo Inácio
são as irrupções de uma vontade de Deus e de uma vontade do próprio coração que
permanece diversa em relação à ordem manifesta. Algo de inesperado começa a
falar no coração da pessoa, algo que surge do incognoscível, que abala a
superfície do conhecido e se lhe opõe. É a origem de um novo “ordenamento da
vida” a partir do coração. Não se trata de discursos racionais que devem ser
postos em prática, passando-os para a vida, de modo a que a afetividade e a
prática fossem simplesmente as consequências – dependentes – de um conhecimento
adquirido [16].
25. Onde o filósofo detém o seu pensamento, o coração fiel ama, adora,
pede perdão e oferece-se para servir no lugar que o Senhor, à escolha, lhe dá
para O seguir. Então percebe que é o “tu” de Deus e que pode ser um “eu” porque
Deus é um “tu” para ele. Na realidade, somente o Senhor se dispõe a tratar-nos
sempre – e para sempre – como um “tu”. Aceitar a sua amizade é uma questão de
coração e constitui-nos como pessoas no sentido pleno da palavra.
26. São Boaventura dizia que, no final, se deve perguntar «não à luz,
mas ao fogo» [17].
E ensinava que «a fé está no intelecto, de tal modo que provoca o afeto. Por
exemplo: saber que Cristo morreu por nós não permanece (somente) conhecimento,
mas torna-se necessariamente afeto, amor» [18].
Nessa linha, São John Henry Newman tomou como lema a frase “ Cor ad cor
loquitur”, porque, além de toda dialética, o Senhor salva-nos falando ao
nosso coração a partir de seu Sagrado Coração. Seguindo ele, grande pensador,
esta mesma lógica fazia com que o lugar do encontro mais profundo consigo mesmo
e com o Senhor não fosse a leitura ou a reflexão, mas o diálogo orante, de
coração a coração, com Cristo vivo e presente. É por isso que Newman encontrava
na Eucaristia o Coração de Jesus Cristo vivo, capaz de libertar, de dar sentido
a cada momento e de derramar a verdadeira paz sobre o ser humano: «Ó Coração
Sacratíssimo e Amorosíssimo de Jesus, estás escondido na Sagrada Eucaristia, e
continuas a bater por nós […]. Eu te adoro, então, com todo o meu melhor amor e
temor, com meu carinho fervoroso, com a minha vontade mais conquistada e
resolvida. Ó meu Deus, quando tu te rebaixas a sofrer para (que eu possa)
receber-te, para comer e beber a Ti, e Tu por um tempo fazes a tua morada
dentro de mim, ó faça meu coração bater com o teu Coração. Purifica-o de tudo o
que é terreno, de tudo o que é orgulhoso e sensual, tudo o que é duro e cruel,
de toda a perversidade, de toda a desordem, de todo amortecimento. Então,
encha-o de Ti, que nem os acontecimentos do dia, nem as circunstâncias do tempo
possam ter o poder de perturbá-lo, mas que em teu amor e temor possa ter paz» [19]
.
27. Perante o Coração de Jesus vivo e atual, o nosso intelecto,
iluminado pelo Espírito, compreende as palavras de Jesus. Assim, a nossa
vontade põe-se em ação para as praticar. Mas isso poderia permanecer como uma
forma de moralismo autossuficiente. Ouvir, saborear e honrar o Senhor pertence
ao coração. Só o coração é capaz de colocar as outras faculdades e paixões e
toda a nossa pessoa numa atitude de reverência e obediência amorosa ao Senhor.
O mundo pode mudar a partir do
coração
28. Só a partir do coração é que as nossas comunidades serão capazes de
unir e pacificar os diferentes intelectos e vontades, para que o Espírito nos
possa guiar como uma rede de irmãos, porque a pacificação é também uma tarefa
do coração. O Coração de Cristo é êxtase, é saída, é dom, é encontro. N’Ele
tornamo-nos capazes de nos relacionarmos uns com os outros de forma saudável e
feliz, e de construir neste mundo o Reino de amor e de justiça. O nosso coração
unido ao de Cristo é capaz deste milagre social.
29. Levar o coração a sério tem consequências sociais. Como ensina o
Concílio Vaticano II, «temos, com efeito, de reformar o nosso coração, com os
olhos postos no mundo inteiro e naquelas tarefas que podemos realizar juntos
para o progresso da humanidade» [20].
Porque «os desequilíbrios de que sofre o mundo atual estão ligados com aquele
desequilíbrio fundamental que se radica no coração do homem» [21].
Perante os dramas do mundo, o Concílio convida-nos a regressar ao coração,
explicando que o ser humano «pela sua interioridade, transcende o universo das
coisas: tal é o conhecimento profundo que ele alcança quando reentra no seu
interior, onde Deus, que perscruta os corações (cf. 1 Sm 16, 7; Jr
17, 10), o espera, e onde ele, sob o olhar do Senhor, decide da própria sorte» [22].
30. Isto não significa confiar demasiado em nós próprios. Sejamos
cautelosos: tenhamos consciência de que o nosso coração não é autossuficiente;
é frágil e ferido. Tem dignidade ontológica, mas ao mesmo tempo deve procurar
uma vida mais digna [23].
O Concílio Vaticano II também diz que «o fermento evangélico despertou e
desperta no coração humano uma irreprimível exigência de dignidade» [24],
ainda que não baste apenas conhecer o Evangelho, ou fazer mecanicamente o que
ele nos manda, para viver de acordo com esta dignidade. Precisamos da ajuda do
amor divino. Recorramos, pois, ao Coração de Cristo, o centro do seu ser, que é
uma fornalha ardente de amor divino e humano, a mais alta plenitude que a
humanidade pode atingir. É aí, nesse Coração, que finalmente nos reconhecemos e
aprendemos a amar.
31. Por último, esse Coração Sagrado é o princípio unificador da
realidade, porque «Cristo é o coração do mundo; a sua Páscoa de morte e
ressurreição é o cerne da história que, graças a Ele, é história da salvação» [25].
Todas as criaturas avançam «juntamente conosco e através de nós, para a meta
comum, que é Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo
abraça e ilumina» [26].
Diante do Coração de Cristo, peço mais uma vez ao Senhor que tenha compaixão
desta terra ferida, que Ele quis habitar como um de nós. Que derrame os
tesouros da sua luz e do seu amor, para que o nosso mundo, que sobrevive entre
guerras, desequilíbrios socioeconómicos, consumismo e o uso anti-humano da
tecnologia, recupere o que é mais importante e necessário: o coração.
GESTOS E
PALAVRAS DE AMOR
32. O Coração de Cristo, que simboliza o centro pessoal de onde brota o
seu amor por nós, é o núcleo vivo do primeiro anúncio. Ali se encontra a origem
da nossa fé, a fonte que mantém vivas as convicções cristãs.
33. O modo como nos ama é algo que Cristo não quis explicar-nos exaustivamente.
Mostra-o nos seus gestos. Observando-O, podemos descobrir como trata cada um de
nós, mesmo que nos custe perceber isso. Procuremos, pois, onde a nossa fé pode
reconhecê-Lo: no Evangelho.
34. O Evangelho diz que Jesus «veio para os seus» (Jo 1, 11). Os
“seus” somos nós, pois não nos trata como algo estranho. Considera-nos como
propriedade sua, que guarda com cuidado, com afeto. Trata-nos como seus. Isto
não significa que sejamos seus escravos; Ele próprio o nega: «Não vos chamo
servos» (Jo 15, 15). O que Ele propõe é a pertença mútua dos amigos.
Veio, superou todas as distâncias, tornou-se próximo de nós, como as coisas
mais simples e quotidianas da existência. Efetivamente, Ele tem outro nome, que
é “Emanuel” e significa “Deus conosco”, Deus próximo à nossa vida, vivendo
entre nós. O Filho de Deus encarnou e «esvaziou-se a si mesmo, tomando a
condição de servo» (Fl 2, 7).
35. Isto se torna evidente quando vemos o modo como age. Está sempre à
procura, sempre próximo, sempre aberto ao encontro. Contemplamos isto quando se
detém a conversar com a Samaritana, junto do poço onde ela ia buscar água (cf. Jo
4, 5-7). Vemo-lo quando, no meio da noite escura, encontra Nicodemos, que tinha
medo de ser visto perto d’Ele (cf. Jo 3, 1-2). Admiramo-lo quando, sem
se envergonhar, deixa que uma prostituta lhe lave os pés (cf. Lc 7,
36-50); quando diz, olhos nos olhos, à mulher adúltera: “Não te condeno” (Jo
8, 11); ou quando, perante a indiferença dos discípulos, diz afetuosamente ao
cego do caminho: “Que queres que te faça?” (Mc 10, 51). Cristo mostra
que Deus é proximidade, compaixão e ternura.
36. Se curava alguém, preferia aproximar-se: «Jesus estendeu a mão e
tocou-o» ( Mt 8, 3); «tocou-lhe na mão» ( Mt 8, 15); «tocou-lhes
nos olhos» ( Mt 9, 29). E, como faz uma mãe, curou os doentes até com a
própria saliva (cf. Mc 7, 33) para que não O sentissem alheio às suas
vidas. Porque «o Senhor conhece a bela ciência das carícias. A ternura de Deus
não nos ama com palavras; aproxima-se de nós e, estando perto, dá-nos o seu amor
com toda a ternura possível» [27].
37. Visto que nos custa confiar, porque fomos feridos por tantas
falsidades, agressões e desilusões, ele sussurra-nos ao ouvido: «Filho, tem
confiança» (Mt 9, 2); «Filha, tem confiança» (Mt 9, 22). Trata-se
de vencer o medo e de tomar consciência de que, com Ele, não temos nada a
perder. A Pedro, que estava desconfiado, «Jesus estendeu-lhe a mão, segurou-o e
disse-lhe: […] “Porque duvidaste?”» (Mt 14, 31). Não tenhas medo.
Deixa-O aproximar-se e sentar-se ao teu lado. Podemos duvidar de muitas
pessoas, mas não d’Ele. E não te paralises por causa dos teus
pecados.Recorda-te que muitos pecadores «sentaram-se com Ele» (Mt
9, 10) e Jesus não se escandalizou com nenhum deles. Os elitistas da religião
queixavam-se e chamavam-Lhe «glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de
impostos e pecadores» (Mt 11, 19). Quando os fariseus criticavam
esta sua proximidade com as pessoas consideradas humildes ou pecadoras, Jesus
dizia-lhes: «Prefiro a misericórdia ao sacrifício» (Mt 9, 13).
38. Esse mesmo Jesus espera hoje que lhe dês a possibilidade de iluminar
a tua existência, de erguer-te, de encher-te com a sua força. Porque, antes de
morrer, disse aos seus discípulos: «Não vos deixarei órfãos; Eu voltarei a vós!
Ainda um pouco e o mundo já não me verá; vós é que me vereis» (Jo
14, 18-19). Ele consegue sempre uma maneira para se manifestar na tua vida, para
que tu O possas encontrar.
39. O Evangelho conta-nos que se aproximou dele um homem rico, cheio de
ideais, mas sem forças para mudar de vida. Então «Jesus, fitando nele o olhar,
sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). Consegues imaginar esse instante, o
encontro entre os olhos deste homem e o olhar de Jesus? Se te chama, se te
convoca para uma missão, primeiro Ele olha para ti, penetra no teu íntimo,
percebe e conhece tudo o que há em ti, pousa sobre ti o seu olhar: «Caminhando
ao longo do mar da Galileia, Jesus viu dois irmãos [...]. Um pouco mais
adiante, viu outros dois irmãos» (Mt 4, 18.21).
40. Muitos textos do Evangelho mostram-nos que Jesus está atento às
pessoas, às suas preocupações, ao seu sofrimento. Por exemplo: «Contemplando a
multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida» (Mt
9, 36). Quando nos parece que somos ignorados por todos, que não há quem se
interesse pelo que nos acontece, que não temos importância para ninguém, Ele
permanece atento a cada um de nós. Foi o que fez notar a Natanael, que se
encontrava só e ensimesmado: «Antes de Filipe te chamar, Eu vi-te quando
estavas debaixo da figueira!» (Jo 1, 48).
41. Precisamente porque está atento, é capaz de reconhecer cada boa
intenção que temos, cada pequena boa ação que praticamos. O Evangelho diz que
«Viu também uma viúva pobre depositar [no cofre do tesouro do templo] duas
moedinhas» (Lc 21, 2) e imediatamente o fez notar aos seus
apóstolos. Jesus presta atenção de tal modo que admira as coisas boas que
encontra em nós. Quando o centurião Lhe suplicou com toda a confiança, «Jesus,
ao ouvi-lo, admirou-se» (Mt 8, 10). Como é belo saber que, se outros
ignoram as nossas boas intenções ou as coisas positivas que fazemos, Jesus não
só não as ignora como até as admira.
42. Enquanto ser humano, tinha aprendido isto de Maria, sua mãe. Ela,
que tudo contemplava com cuidado e «guardava tudo no seu coração» (Lc 2,
19.51), ensinou-O desde muito cedo, na companhia de São José, a prestar
atenção.
43. Embora nas Escrituras tenhamos a sua Palavra sempre viva e atual,
por vezes Jesus fala interiormente e convoca-nos para nos conduzir ao melhor
lugar. Esse lugar melhor é o seu próprio Coração. Ele chama-nos para nos
introduzir no lugar onde podemos recuperar a força e a paz: «Vinde a mim, todos
os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei de aliviar-vos» (Mt 11,
28). Por isso, pede aos seus discípulos: «Permanecei em mim» (Jo 15, 4).
44. As palavras que Jesus pronunciou indicavam que a sua santidade não
elimina os sentimentos. Por vezes, mostravam um amor apaixonado, que sofre por
nós, se comove, se lamenta e chega, até mesmo, às lágrimas. É evidente que Ele
não era indiferente às preocupações e angústias comuns das pessoas, como o
cansaço ou a fome: «Tenho compaixão desta multidão [...] Não têm nada para
comer [...] desfalecerão no caminho, e alguns vieram de longe» (Mc 8,
2-3).
45. O Evangelho não esconde os sentimentos de Jesus em relação a
Jerusalém, a cidade amada: «Quando se aproximou, ao ver a cidade, Jesus chorou
sobre ela» (Lc 19, 41) e exprimiu o seu maior desejo: «Se neste dia
também tu tivesses conhecido o que te pode trazer a paz!» (Lc 19,
42). Os evangelistas, embora por vezes O mostrem poderoso ou glorioso, não
deixam de exprimir os seus sentimentos diante da morte e da dor dos amigos.
Antes de contar que, junto do túmulo de Lázaro, «Jesus começou a chorar» (Jo
11, 35), o Evangelho detém-se a dizer que «Jesus era muito amigo de Marta, da
sua irmã e de Lázaro» (Jo 11, 5) e que, ao ver Maria e os seus companheiros
a chorar, «suspirou profundamente e comoveu-se» (Jo 11, 33).A narração
não deixa dúvidas de que se trata de um pranto sincero, que nasce de uma
perturbação interior. Por fim, a angústia de Jesus perante a sua própria morte
violenta, às mãos daqueles que tanto amava, também não ficou escondida:
«começou a sentir pavor e a angustiar-se» (Mc 14, 33), a ponto de dizer:
«a minha alma está numa tristeza mortal» (Mc 14, 34). Esta perturbação
interior exprime-se com toda a sua força no grito do Crucificado: «Meu Deus,
meu Deus, porque Me abandonaste?» (Mc 15, 34).
46. Tudo isto, à primeira vista, pode parecer um mero romanticismo
religioso. No entanto, é o que há de mais sério e mais decisivo. Encontra a sua
expressão máxima em Cristo pregado numa cruz. Essa é a palavra de amor mais
eloquente. Não se trata de algo superficial, não é puro sentimento, não é uma
alienação espiritual. É amor. Por isso, quando São Paulo procurava as palavras
certas para explicar a sua relação com Cristo, disse:«amou-me e a Si mesmo se
entregou por mim» (Gl 2, 20). Esta era a sua maior convicção: saber-se
amado. A entrega de Cristo na cruz subjugava-o, mas só fazia sentido porque
havia algo ainda maior do que essa entrega: “Amou-me”. Quando muitas pessoas
procuravam em várias propostas religiosas salvação, bem-estar ou segurança,
Paulo, tocado pelo Espírito, soube olhar além e maravilhar-se com o que há de
maior e mais fundamental: “Amou-me”.
47. Depois de contemplar Cristo, vendo o que os seus gestos e palavras
nos revelam do seu Coração, recordemos agora como a Igreja reflete sobre o
santo mistério do Coração do Senhor.
ESTE É O
CORAÇÃO QUE TANTO AMOU
48. A devoção ao Coração de Cristo não é o culto a um órgão separado da
Pessoa de Jesus. O que contemplamos e adoramos é a Jesus Cristo por inteiro, o
Filho de Deus feito homem, representado numa imagem sua em que se destaca o seu
coração. Neste caso, o coração de carne é entendido como imagem ou sinal
privilegiado do centro mais íntimo do Filho incarnado e do seu amor ao mesmo
tempo divino e humano, porque, mais do que qualquer outro membro do seu corpo,
é «o índice natural ou o símbolo da sua imensa caridade» [28].
49. É indispensável sublinhar que nos relacionamos com a Pessoa de
Cristo, através da amizade e da adoração, atraídos pelo amor representado na
imagem do seu Coração. Veneramos essa imagem que O representa, mas a adoração
dirige-se apenas a Cristo vivo, na sua divindade e em toda a sua humanidade,
para nos deixarmos abraçar pelo seu amor humano e divino.
50. Seja qual for a imagem utilizada, é certo que o objeto de adoração é
o Coração vivo de Cristo – e nunca uma imagem –, porque faz parte do seu Corpo
santíssimo e ressuscitado, inseparável do Filho de Deus que o assumiu para
sempre. Ele é adorado enquanto «o coração da pessoa do Verbo a quem está unido
de modo inseparável» [29].
Não o adoramos isoladamente, mas na medida em que com esse Coração é o próprio
Filho incarnado que vive, ama e recebe o nosso amor. Por isso, qualquer ato de
amor ou de adoração ao seu Coração é «na realidade e propriamente tributado ao
Cristo mesmo» [30],
porque se refere espontaneamente a Ele e é «o símbolo e a imagem expressa da
infinita caridade de Cristo» [31].
51. Por isso, ninguém deve pensar que esta devoção nos possa separar ou
distanciar de Jesus Cristo e do seu amor. De modo espontâneo e direto, ela
dirige-nos a Ele e só a Ele, que nos chama a uma amizade valiosa, feita de
diálogo, afeto, confiança e adoração. Este Cristo com o seu coração trespassado
e ardente é o mesmo Cristo que por amor nasceu em Belém, percorreu a Galileia
curando, acariciando, derramando misericórdia, e amou-nos até ao fim,
estendendo os braços na cruz. Por fim, é o mesmo que ressuscitou e vive
gloriosamente no meio de nós.
52. Convém notar que a imagem de Cristo com o seu coração, ainda que de
maneira nenhuma possa ser objeto de adoração, não é uma imagem qualquer, entre
muitas outras que poderíamos escolher. Não é algo inventado de modo abstrato ou
desenhado por um artista, «não é um símbolo imaginário, é um símbolo real, que
representa o centro, a fonte da qual brotou a salvação para a humanidade
inteira» [32].
53. Há uma experiência humana universal que torna esta imagem única.
Pois não há dúvida que, ao longo da história e em várias partes do mundo, o
coração se tenha tornado um símbolo da intimidade mais pessoal e também do
afeto, emoções e capacidade de amar. Para além de qualquer explicação
científica, uma mão colocada sobre o coração de um amigo exprime um afeto
especial; quando uma pessoa se apaixona e está perto da pessoa amada, o
batimento cardíaco acelera; quando alguém sofre um abandono ou uma desilusão
por parte da pessoa amada, sente uma espécie de forte opressão no coração.Por
outro lado, para exprimir que algo é sincero, que vem realmente do centro da
pessoa, afirma-se: “Digo-o do fundo do coração”. A linguagem poética não pode
ignorar a força destas experiências. Por isso, é inevitável que, ao longo da
história, o coração tenha alcançado uma força simbólica única, que não é
meramente convencional.
54. É, pois, compreensível que a Igreja tenha escolhido a imagem do
coração para representar o amor humano e divino de Jesus Cristo e o núcleo mais
íntimo da sua Pessoa. Mas, se a imagem de um coração com chamas de fogo pode
ser um símbolo eloquente que nos recorda o amor de Jesus Cristo, é conveniente
que esse coração faça parte de uma imagem de Jesus Cristo.Isto torna ainda mais
significativo o seu apelo a uma relação pessoal de encontro e de diálogo [33].
Essa imagem venerada de Cristo, onde se destaca o seu coração amoroso, tem ao
mesmo tempo um olhar que apela ao encontro, ao diálogo e à confiança; tem mãos
fortes capazes de nos sustentar; tem uma boca que nos fala de uma forma única e
personalíssima.