Coração de paz
Dom Walmor Oliveira de Azevedo - Arcebispo
de Belo Horizonte (MG)
O
Papa Francisco convoca a Igreja Católica a viver, em outubro, o Dia de Jejum e
Oração pela Paz no Mundo – convite dirigido também a cada pessoa que reconhece
a própria força espiritual. Ao lançar o olhar sobre o mundo e se sensibilizar
com os muitos focos de guerra, pode-se questionar sobre a eficácia de se
recorrer à força espiritual na busca pela solução de problema tão grave. Muitos
acreditam que a paz somente será alcançada a partir das mesas de diálogo e de
negociação – várias delas sem apresentar frutos efetivos. Enquanto isso,
agravam-se tensões, vidas inocentes são perdidas, problemas sociopolíticos se
acentuam. A efetiva reação para debelar os conflitos não depende de máquinas ou
simplesmente de estratégias. Precisa, essencialmente, de cada ser humano
fazer-se morada de um coração de paz. A oração e o jejum reúnem
propriedades inigualáveis para tecer na interioridade humana um coração de paz
– que aliado à inteligência e a outras aptidões, possibilita a intuição de
respostas na superação das muitas formas de violência.
Jejum
e oração podem qualificar cada pessoa na promoção da paz – no ambiente
doméstico, na comunidade em que se vive, com repercussões nos âmbitos políticos
e nos cenários internacionais. Na contramão dessas práticas alicerçadas na fé
está o caminho fácil e tentador de se deixar conduzir pelo ódio e desejo de
vingança, distanciando-se das possibilidades de diálogos e do exercício da
solidariedade. A prática educativa do jejum e o recurso diário da oração
incidem no tecido de um coração de paz, com força de paixão, movendo o ser
humano para trabalhar pelo bem comum. A força da paixão irradiada de um coração
de paz promove a fraternidade e efetiva a solidariedade. Compreende-se, pois,
que investir para conquistar um coração de paz é alavanca indispensável para
consolidar, no mundo, realidades mais pacíficas. Por isso, trata-se de
importante investimento e ensinamento da Igreja, em sintonia e cooperação com
outras instituições e segmentos da civilização contemporânea.
Aqueles
que cultivam um coração de paz tornam-se agentes corajosos e proféticos no
enfrentamento das muitas formas de violência – atentados a dignidades
invioláveis. Comove pensar a situação de tantas crianças e outros indefesos,
vítimas de guerras fratricidas, de escaladas do ódio e da vingança. Para que a
humanidade possa reagir, é preciso um passo primeiro: cada pessoa se
conscientizar de que precisa ser coração de paz – a paz é dom e missão. Essa
consciência torna-se clara quando o ser humano reconhece a sua referência
insubstituível: Deus, de quem é imagem e semelhança. No vínculo com o Criador
se inscreve a missão de cada pessoa – cultivar um coração de paz, sustentado
pelo Deus da paz. O ser humano é chamado, assim, a participar da criação divina
e da ação redentora de Deus.
Um
coração de paz é reserva de força moral indispensável para fazer frente a
irracionalidades e recompor a frequente perda de sentido da vida, em uma
sociedade marcada pela pluralidade, mudanças muito bruscas e velozes.
Existe uma gramática no coração, a gramática da paz, que não pode ser abolida,
nem mesmo desprezada. Essa gramática contempla a observância e o respeito ao
direito natural, sob pena das ameaças promovidas pelo subjetivismo. Do subjetivismo
brotam razões que se contrapõem ao bem comum e à fraternidade, pois são
prisioneiras das estreitezas e das simpatias particulares. Desrespeitar o
direito natural é inviabilizar diálogos, intuições solidárias, perpetuando
exclusões e discriminações. Núcleo central do coração de paz é o reconhecimento
da igualdade de natureza de todas as pessoas. Desconsiderar esse princípio é
promover desigualdades mundo afora. Toda pessoa precisa ser formada para
ter e cultivar um coração de paz, o que contempla engajar-se na promoção da
igualdade entre as pessoas, configurando um funcionamento social
inclusivo.
O
ensinamento social na Igreja Católica compreende a importância de se revestir
corações com a gramática da paz. Um empreendimento hercúleo, mas que não pode
ser descartado em momento algum. Um processo educativo em que todos são
aprendizes e mestres. Negligenciar esse processo é oferecer possibilidades para
que sejam acentuadas diferentes formas de violência, inclusive as que são
praticadas contra o planeta. Um coração de paz é ponto de partida determinante
no processo de conversão ecológica. Na verdade, a paixão que nasce do coração
de paz impulsiona o convívio harmonioso do ser humano com a natureza. Há, pois,
a exigência de um grande cuidado para que um coração de paz habite a
interioridade humana, priorizando uma espiritualidade místico-contemplativa que
leve ao encontro da grandeza de Deus. Esse encontro possibilita o iluminar do
rosto de cada irmão e irmã que é essencial à convivência e à cooperação
construtoras do bem comum, sem matar as diferenças ou hierarquizar
singularidades.
A
adoção de compreensões que relativizam a sacralidade da dignidade humana é um
risco. Essas compreensões não podem se fundamentar na hegemonia dos critérios e
das escolhas orientadas pelos interesses do mercado, do lucro e da defesa de
autonomias que facilitam a destruição de semelhantes. Sem um coração de paz
prevalecerão posturas autoritárias ou que expressem ressentimentos,
precipitando a vida no caos. É urgente cultivar a paz no próprio coração,
tornando-o repleto de uma paixão que inspire o exercício da solidariedade
fraterna e ilumine intuições na busca pela consolidação de cenários de paz. A
mudança para alcançar um mundo mais pacífico começa pela interioridade humana.
Nesse essencial processo de transformação, o jejum e a oração muito contribuem,
formando agentes do bem. Qualificam o ser humano para adequadamente exercer as
suas responsabilidades. Revestem o agir de cada pessoa com uma paixão que nasce
do coração de paz.