Homilia do papa Francisco
na Missa Crismal da Quinta-feira Santa 2024
Hoje (28), Quinta-feira Santa, o papa Francisco
celebrou a Missa Crismal na Basílica Vaticana. Diante de milhares de fiéis e
especialmente diante dos sacerdotes que hoje renovaram suas promessas, o papa
dedicou sua homilia a refletir sobre a "compunção", aquilo que
provoca "as lágrimas do coração" por ter se afastado de Deus com o
pecado e que purifica o coração.
Abaixo, a homilia completa do papa Francisco:
«Todos os que estavam na sinagoga, tinham os olhos
fixos n’Ele» (Lc 4, 20). Não cessa de nos impressionar esta
passagem do Evangelho, que nos leva a visualizar a cena, a imaginar aquele
momento de silêncio com todos os olhares voltados para Jesus, num misto de
maravilha e desconfiança. Entretanto, sabemos como tudo terminou: depois de
Jesus ter desmascarado as falsas expetativas de seus conterrâneos, estes
«encheram-se de furor» (Lc 4, 28), saíram da sinagoga e
expulsaram-No da cidade. Os olhos estiveram fixos em Jesus, mas os seus
corações não estavam dispostos a mudar, à sua palavra. Assim perderam a ocasião
da sua vida.
Contudo na noite de hoje, Quinta-feira Santa,
acontece uma troca de olhares diferente. Protagonista é o
primeiro Pastor da nossa Igreja, Pedro. Inicialmente também ele não deu crédito
à palavra do Senhor, que o desmascarava: «Tu negar-Me-ás três vezes» (Mc 14,
30). Assim «perdeu de vista» Jesus, e renegou-O ao cantar do galo. Mas depois,
«voltando-Se, o Senhor fixou os olhos nele; e Pedro recordou-se da palavra do
Senhor (…). E, vindo para fora, chorou amargamente» (Lc 22, 61-62).
Os seus olhos acabaram inundados de lágrimas que, brotando dum coração ferido,
o libertaram de falsas certezas e justificações. Aquele choro amargo mudou-lhe
a vida.
Ano após ano, as palavras e os gestos de Jesus não
conseguiram mudar as expetativas de Pedro, aliás semelhantes às do povo de
Nazaré: também ele esperava um Messias político e poderoso, forte e resoluto, e
confrontado com o escândalo dum Jesus frágil, preso sem opor resistência,
declarou: «Não O conheço» (Lc 22, 57). E era verdade! Não O
conhecia… Começou a conhecê-Lo quando, na noite da negação, deixou espaço às
lágrimas da vergonha, às lágrimas do arrependimento. E vai conhecê-Lo verdadeiramente,
quando, «triste por Jesus lhe ter perguntado, à terceira vez: “Tu és deveras
meu amigo?”», se deixará penetrar plenamente pelo olhar de Jesus. Então,
daquele «não O conheço», passará a dizer: «Senhor, tu sabes tudo» (Jo 21,17).
Queridos irmãos sacerdotes, verificam-se a cura do
coração de Pedro, a cura do Apóstolo, a cura do Pastor, quando, feridos e
arrependidos, se deixam perdoar por Jesus; passam através das lágrimas, daquele
pranto amargo, do sofrimento que permite redescobrir o amor. Por isso senti o
desejo de partilhar convosco qualquer pensamento sobre um aspecto, bastante
negligenciado, mas essencial da vida espiritual; proponho-o hoje com uma
palavra talvez insólita, mas creio que nos fará bem voltar a descobrir: a compunção.
A palavra evoca o picar: a compunção é
«uma aguilhoada no coração», um trespassamento que o fere, fazendo brotar as
lágrimas do arrependimento. Pode-nos ajudar aqui um episódio, que tem a ver
ainda com São Pedro. Trespassado pelo olhar e as palavras de Jesus ressuscitado,
purificado e inflamado pelo Espírito, no dia de Pentecostes proclamou aos
habitantes de Jerusalém: «Deus estabeleceu como Senhor e Messias esse Jesus por
vós crucificado» (At 2, 36). Os presentes, «quando ouviram estas
coisas – diz o texto – sentiram o coração trespassado» (At 2, 37),
dando-se conta do mal que tinham feito e, simultaneamente, da salvação que o
Senhor lhes concedia.
Vemos aqui o que é a compunção: não um sentimento
de culpa que te lança por terra, nem uma série de escrúpulos que paralisam, mas
é uma picada benéfica que queima intimamente e cura, pois o coração, quando se
dá conta do próprio mal e se reconhece pecador, abre-se, acolhe a ação do
Espírito Santo, como água viva que o muda a ponto de lhe correrem as lágrimas
pelo rosto. Quem retira a máscara e se deixa olhar por Deus no coração, recebe
o dom de tais lágrimas, as águas mais santas depois das do Batismo. [1]Amados irmãos sacerdotes, são estes
os votos que vos faço hoje.
Entretanto é preciso compreender bem o que
significa chorar por nós próprios. Não significa sentir
pena de nós, como muitas vezes somos tentados a fazer. Isso acontece, por
exemplo, quando estamos decepcionados ou preocupados com as nossas expetativas
goradas, com a falta de compreensão por parte dos outros, talvez dos irmãos e
dos superiores. Ou quando nos deleitamos, por um estranho e doentio prazer do
espírito, a repassar as injustiças sofridas para sentirmos pena de nós mesmos,
pensando que não nos deram o merecido e imaginando o futuro reservando-nos de
contínuo apenas surpresas negativas. Como nos ensina São Paulo, esta é a
tristeza segundo o mundo, oposta à tristeza segundo Deus. [2]
Diversamente chorar por nós próprios é
arrepender-nos seriamente de ter entristecido a Deus com o pecado; reconhecer
que diante d’Ele sempre estamos em débito, nunca em crédito; admitir que se
perdeu o caminho da santidade, não tendo confiado no amor d’Aquele que deu a
vida por mim. [3] É olhar para dentro de mim e
sentir pesar pela minha ingratidão e inconstância; meditar com tristeza nos
meus fingimentos e falsidades; descer aos meandros da minha hipocrisia, a
hipocrisia clerical: amados irmãos, aquela hipocrisia na qual escorregamos
tanto… tanto. Tende cuidado com a hipocrisia clerical! Para em seguida erguer o
olhar para o Crucificado e deixar-me comover pelo seu amor que sempre perdoa e
eleva, que nunca deixa frustradas as esperanças de quem n’Ele confia. Assim as
lágrimas continuarão a cair, e purificam o coração.
De fato, a compunção requer esforço, mas restitui a
paz; não provoca angústia, mas alivia a alma dos seus pesos, porque intervém na
ferida deixada pelo pecado, preparando-nos para receber lá mesmo a carícia do
Senhor, que transforma o coração quando está «contrito e arrependido» (Sal 51,
19), amolecido pelas lágrimas. Assim a compunção é o antídoto para a esclerocardia,
aquela dureza do coração frequentemente denunciada por Jesus (Mc 3,
5; 10, 5).
Na verdade, o coração sem arrependimento nem
lágrimas, torna-se rígido: primeiro, torna-se rotineiro, em seguida intolerante
com os problemas e indiferente às pessoas, depois frio e quase impassível, como
se estivesse envolvido por uma concha inquebrável, e finalmente coração de
pedra. Mas, assim como a água, gota a gota, escava a pedra, as lágrimas
lentamente escavam os corações endurecidos. Deste modo assiste-se ao milagre da
tristeza, da tristeza boa que leva à doçura.
Compreendemos então por que motivo insistem na
compunção os Mestres espirituais. São Bento convida-nos todos os dias a
«confessar a Deus com lágrimas e gemidos os nossos pecados passados» [4] e, quando rezamos – afirma
ele –, «não seremos ouvidos pelas nossas palavras, mas pela pureza do coração e
pela compunção que arranca as lágrimas». [5] E enquanto São João
Crisóstomo defende que uma única lágrima apaga um braseiro de pecados, [6] a Imitação de Cristo recomenda:
«Abandona-te à compunção do coração», pois muitas vezes, «pela leviandade do
coração e pelo descuido dos nossos defeitos, não nos apercebemos dos males da
nossa alma». [7]
O remédio é a compunção, porque nos reconduz à
verdade de nós mesmos, de tal modo que a profundidade do nosso ser pecador revele
a realidade infinitamente maior do nosso ser perdoado, a alegria de
ser perdoado. Por isso não surpreende a afirmação de Isaque de Nínive: «Quem
esquece a medida dos próprios pecados, esquece a medida da graça de Deus para
com ele». [8]
A verdade, amados irmãos e irmãs, é que cada um dos
nossos renascimentos interiores brota sempre do encontro entre a nossa miséria
e a sua misericórdia – encontram-se a nossa miséria e a sua misericórdia –,
passa através da nossa pobreza de espírito que permite ao Espírito Santo
enriquecer-nos. A esta luz, compreendem-se as afirmações fortes de muitos
Mestres espirituais. Pensemos nestas palavras paradoxais do já referido Santo
Isaac: «Aquele que conhece os seus próprios pecados (…) é maior do que aquele
que, com a oração, ressuscita os mortos. Aquele que chora por si mesmo uma hora
é maior do que quem serve o mundo inteiro com a contemplação (…). Aquele a quem
é concedido conhecer-se a si mesmo é maior do que aquele a quem é dado ver os
anjos». [9]
Irmãos, pensemos em nós, sacerdotes, e
interroguemo-nos quão presente estejam a compunção e as lágrimas no nosso exame
de consciência e na nossa oração. Perguntemo-nos se, com o passar dos anos,
aumentam as lágrimas. Sob este aspeto, é bom suceder o contrário do que
acontece na vida biológica: nesta, quando se cresce, chora-se menos do que em
criança. Mas, na vida espiritual, onde o que conta é tornar-se criança
(cf. Mt 18, 3), quem não chora retrocede, envelhece
interiormente, ao passo que a pessoa que chega a uma oração mais simples e
íntima, feita de adoração e comoção diante de Deus: isso amadurece-nos.
Prende-se cada vez menos a si mesma e mais a Cristo, e torna-se pobre em
espírito. Deste modo sente-se mais próxima dos pobres, os prediletos de Deus, que
antes – como escreve São Francisco no seu testamento – mantinha afastados,
porque estava no pecado, mas cuja companhia, depois, de amarga se torna
doce». [10] E assim, quem está
compungido no coração, sente-se cada vez mais irmão de todos os pecadores do
mundo, sente-se mais irmão, sem qualquer aparência de superioridade nem dureza
de juízo, mas sempre com desejo de amar e reparar.
E esta, amados irmãos é outra caraterística da
compunção: a solidariedade. Um coração dócil, liberto pelo espírito
das Bem-aventuranças, tende naturalmente a sentir compunção pelos outros: em
vez de se irritar e escandalizar pelo mal feito pelos irmãos, chora pelos
pecados deles. Não se escandaliza. Cumpre-se uma espécie de reviravolta: a
tendência natural de ser indulgente consigo mesmo e inflexível com os outros
inverte-se e, pela graça de Deus, a pessoa torna-se exigente consigo mesma e
misericordiosa com os outros. E o Senhor procura, especialmente entre as
pessoas que Lhe estão consagradas, quem chore os pecados da Igreja e do mundo,
fazendo-se instrumento de intercessão por todos. Na Igreja, temos tantas
testemunhas heroicas que nos mostram este caminho. Pensemos nos monges do
deserto, no Oriente e no Ocidente; na intercessão contínua de São Gregório de
Narek, feita de gemidos e lágrimas; no oferecimento de Francisco pelo Amor não
amado; nos sacerdotes, como o Cura d'Ars, que viviam de penitência pela
salvação dos outros. Amados irmãos, isto não é poesia; isto é sacerdócio!
Queridos irmãos, a nós – seus Pastores –, o Senhor
não pede juízos de desprezo contra quem não crê, mas amor e lágrimas por quem
vive afastado. Quando as situações difíceis que vemos e vivemos, a falta de fé,
os sofrimentos que tocamos, entram em contato com um coração compungido,
decididamente não suscitam a polêmica, mas a perseverança na misericórdia.
Quanto precisamos de ser libertos de durezas e recriminações, de egoísmos e
ambições, de rigidezes e insatisfações, para nos confiar e entregar a Deus,
encontrando n’Ele uma paz que salva de toda a tempestade! Adoremos,
intercedamos e choremos pelos outros: permitiremos assim que o Senhor realize
maravilhas. E não temamos! Ele surpreende-nos sempre…
De tudo isso beneficiará o nosso ministério. Hoje,
numa sociedade laica, corremos o risco de ser muito ativos e, ao mesmo tempo,
sentir-nos impotentes, com o resultado de perdermos o entusiasmo e sermos tentados
a «deixar de remar», fechar-nos em lamentos e fazer prevalecer a grandeza dos
problemas sobre a grandeza de Deus. Se isto acontecer, tornamo-nos amargos e
pungentes, sempre a criticar, encontrando sempre qualquer ponto para se
lamentar. Se, pelo contrário, a amargura e a compunção se voltarem, não para o
mundo, mas para o próprio coração, o Senhor não deixará de nos visitar e
reerguer. Como nos exorta a Imitação de Cristo: «Não carregues
dentro de ti os assuntos dos outros, nem te preocupes com o que fazem as
pessoas mais importantes; em vez disso, vigia sempre em primeiro lugar sobre ti
e dirige a tua advertência particularmente a ti mesmo, em vez de outras
pessoas, mesmo queridas. Não fiques triste, se não recebes o favor dos homens;
o que, ao invés, te deve pesar, entristecer é a constatação de não estar
totalmente e com segurança no caminho do bem». [11]
Por último, quero sublinhar um aspeto essencial: a
compunção, mais do que fruto do nosso exercício, é uma graça e
como tal deve ser pedida na oração. O arrependimento é dom de Deus,
é fruto da ação do Espírito Santo. Para facilitar o seu
crescimento, partilho duas pequenas recomendações. A primeira é não olhar a
vida e a vocação numa perspectiva de eficiência e imediatismo, ligada apenas ao
dia de hoje e às suas urgências e expetativas, mas olhá-las no arco englobando
passado e futuro como um todo: no passado, para recordar a fidelidade de Deus –
Deus é fiel –, fazendo memória do seu perdão, ancorando-nos ao seu amor; e no
futuro, para pensar na meta eterna a que somos chamados, no fim último da nossa
existência. Alargar os horizontes, amados irmãos, alargar os horizontes ajuda a
dilatar o coração, incentiva a reentrar em nós mesmos com o Senhor e viver a
compunção. Uma segunda recomendação, que vem como consequência da anterior:
descubramos a necessidade de nos dedicarmos a uma oração que não seja
obrigatória e funcional, mas livre, calma e prolongada. Irmão, como é a tua
oração? Voltemos à adoração – tens-te esquecido de adorar? – e voltemos e à
oração do coração. Repitamos: Jesus, Filho de Deus, tende piedade de
mim, pecador. Sintamos a grandeza de Deus na nossa baixeza de pecadores,
para olharmos para dentro de nós mesmos e nos deixarmos trespassar pelo seu
olhar. Descobriremos a sabedoria da Santa Mãe Igreja, que nos introduz na
oração sempre com a invocação do pobre que clama: Senhor, apressai-Vos
a socorrer-me.
Por fim, queridos irmãos, voltemos a São Pedro e às
suas lágrimas. O altar colocado sobre o seu túmulo não pode deixar de nos fazer
pensar nas inúmeras vezes que, apesar de ali dizermos cada dia «Tomai todos
e comei: Isto é o meu Corpo oferecido em sacrifício por vós»; quantas vezes
desiludimos e entristecemos Aquele que nos ama até ao ponto de fazer das nossas
mãos os instrumentos da sua presença! Portanto, é bom fazer nossas estas
palavras que recitamos em surdina durante a Santa Missa: «Em humildade e
contrição, sejamos recebidos por Vós, Senhor…» e ainda: «Lavai-me,
Senhor, da minha iniquidade, e purificai-me do meu pecado». Em tudo,
irmãos, sirva-nos de consolação a certeza que nos é dada hoje pela Palavra: o
Senhor, consagrado com a unção (cf. Lc 4, 18), veio «curar os
quebrantados de coração» (Is 61, 1). Então, se o coração se
despedaçar, pode ser faixado e curado por Jesus. Obrigado, queridos sacerdotes,
obrigado pelo vosso coração aberto e dócil; obrigado pelas vossas fadigas e
obrigado pelo vosso pranto; obrigado porque levais a maravilha da misericórdia
– perdoai sempre, sede misericordiosos – e levai esta misericórdia, levai Deus
aos irmãos e irmãs do nosso tempo. Que o Senhor vos console, confirme e
recompense! Obrigado!
Fonte: ACIDigital